23.4.18

Happening e religião: um lugar para a arte contemporânea




A mente de todos os dias é a mente de Buda.[1]

            O desempenho no acontecimento é a chance que a arte contemporânea tem de emitir valores a sociedade, onde talvez o mais destacado no momento atual seja justamente o da atenção ao momento.
            O budismo esteve presente nos atores dos primeiros happening’s e com isso parece que tal conexão nunca se desfez essencialmente. A atenção ao momento presente é realmente vivenciar, viver o ato, estar em conexão com toda diversidade de vida.
            No culto à Dionísio nosso corpo toma mais da presença, isso possibilita que já não estejamos ausentes, que não sejamos virtuais, que não estejamos no passado ou no futuro, mas que realmente façamos o presente, nos apresentando, no movimento, na voz consciente ou na percepção das formas; “desde que estejam à luz do sol da plena consciência, todo pensamento, toda ação tornam-se sagrados. Sob esta luz não existem fronteiras entre o sagrado e o profano”.[2]
            A dificuldade de manter qualquer atenção ao milagre da vida nos dias atuais passa a ser também o grande desafio dos artistas. Sendo assim o happening se torna o grande chamamento a experiência de realidade da feitura de milagres. Se o momento é fenômeno extra-ordinário, não cotidianamente mecânico, é assim que a verdadeira religião acontece, pois atentos à atualidade estamos novamente ligados a deus.
            No período de transição da arte moderna para a contemporânea, surgiram questões de conceito que foram se dando para cada tipo de nova criação artística. Uma destas Hélio Oiticica relata no texto sobre a nova objetividade, destacando o papel particular do fenômeno brasileiro, principalmente sobre a teoria do Não-objeto de Ferreira Gullar; escreve ele:

A proposição de Gullar que mais nos interessa é também a principal que o move: quer ele que não bastem à consciência do artista como homem atuante somente o poder criador e a inteligência, mas que o mesmo seja um ser social, criador não só de obras mas modificador também de consciências (no sentido amplo, coletivo), que colabore ele nessa revolução transformadora, longa e penosa, mas que algum dia terá atingido o seu fim – que o artista “participe” enfim da sua época, de seu povo.[3]

            Naquele período de transição, fala-se da arte pós-moderna e ainda da antiarte, justamente por vir o termo “arte” carregado de valores ligados ao transcendente, ou seja, todos os milênios sob a pecha platônica a qual Nietzsche já denunciava quando diz, por exemplo que

A realidade foi despojada de seu valor, de seu sentido, de sua veracidade justamente no mesmo grau em que foi falsificado um mundo ideal (...) A mentira do ideal foi, até agora, a blasfêmia contra a realidade; a própria humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa até o mais baixo de seus instintos – a ponto de adotar os valores inversos como se fossem aqueles com os quais ela poderia garantir para si a prosperidade, o futuro, o direito altivo ao futuro.[4]

Quando finalmente a arte ganha autonomia, proporcionar-se-á a chance dela exercer a autorreflexão como campo sociocultural, permitindo seu poder filosófico, aproximando-a das palavras do filósofo quando diz que “a filosofia, assim como a entendi e vivenciei até agora, é a vida espontânea no gelo e nas montanhas mais altas – a procura de tudo que é estranho e duvidoso na existência, de tudo aquilo que até agora foi excomungado pela moral”[5]; por isso que um pouco mais de meio século depois o artista vai refletir:

Se formos um grupo atuante, realmente participante, seremos um grupo contra coisas, argumentos, fatos. Não pregamos pensamentos abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos, que para o serem tem que corresponder aos itens citados e sumariamente descritos cima. No Brasil (nisto também se assemelharia ao Dadá) hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social.[6]

            Quando finalmente o deus ideal morre, nascemos como pequenos deuses, tornamos à conexão natural, mas é através da arte que a consciência prática destes valores se materializam, pela vivencia do artista sendo este seu trabalho, como escreveu Lygia Clark na Carta a Mondrian:

Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir a outra pessoa este “momento” parado na dinâmica cosmológica, que o artista capta.[7]

Quando finalmente os valores estão destituídos da verticalidade posta por um poder estabelecido, manifesto assim pelo momento do artista, é que o milagre da vida acontece, na pluralidade da capacidade humana de perceber tais questões é onde finalmente um mundo justo pode ocorrer, a comunhão, pois se dá em aceitar a condição da espécie de alcançar pela experiência mesma e não mais sob um jugo de devir.

É essa a tecla fundamental do novo conceito de antiarte: não apenas martelar contra a arte do passado ou contra os conceitos antigos (como antes, ainda uma atitude baseada na transcendentalidade), mas criar novas condições experimentais, em que o artista assume o papel de “proposicionista”, ou “empresário” ou mesmo “educador”. O problema antigo de “fazer uma nova arte” ou de derrubar culturas já não se formula assim – a formulação certa seria a de se perguntar: quais as proposições, promoções e medidas a que se devem recorrer para criar uma condição ampla de participação popular nessas proposições abertas, no âmbito criador a que se elegeram esses artistas. Disso depende sua própria sobrevivência e a do povo nesse sentido.[8]

            Eis o árduo trabalho do artista-filósofo ante a massa dada aos grandes poderes, Estado e mercado principalmente, os donos das mídias em tempos de hipermídia. Nos resta apresentar com atitudes de vida e obras que “falem”, que emitam os valores distintos dos domínios, eis o campo que devemos agir, eis que precisamos lutar pela liberdade do fazer artístico, mas do fazer artístico livre das ideologias externas, é preciso uma arte que emita os valores do Um através de sua política inerente para que a humanidade seja exaltada e não os poderes.

Diego Marcell
24/04/2018

Referências
CLARK, Lygia. Carta a Mondrian in FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Tradução Pedro Süsseking... et al. – Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
NHAT-HANH, Thich. Momento presente, momento maravilhoso. Tradução Maria Alda Xavier Leoncio e Odete Lara. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2003.
OITICICA, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade in FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Tradução Pedro Süsseking... et al. – Rio de Janeiro: Zahar, 2006.



[1] NHAT-HANH. 2004, p. 49.
[2] Idem.
[3] OITICICA in FERREIRA; COTRIM. 2006, p. 165.
[4] NIETZSCHE. 2003, p. 16.
[5] Idem, p. 17.
[6] OITICICA, p. 167.
[7] CLARK in FERREIRA; COTRIM. 2006, p. 46.
[8] OITICICA, p. 167.

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