23.1.20

Luzes ocasionais de um mundo cinza


            Madrugada de domingo para segunda deitado em minha cama com a cabeça na janela, talvez fosse o único neste prédio de idosos a ter a luz acesa; lá em baixo alguns barulhos se atrevem às 2:37, estou muito concentrado na página 437, começo a me debater com a cortina, fico angustiado tentando me concentrar para entender a filosofia de Popper, não sei se é ela ou o cansaço que está fazendo isso, resolvo dormir para tentar assimilá-lo amanhã, o silencio se instaurou na rua, as latas, os gatos pretos ou os mendigos comedores de gatos pretos resolveram deixar o beco dos artistas idosos em paz. Vou beber um copo de leite que tenho fome, mas nada para comer, nas minhas andadas pelo quarto a mulher acorda e diz frases sem sentido, hoje ela disse uma assim – não quer ouvir loucura não fomenta – mas depois refletindo sobre isso até que a frase fazia bastante sentido. Ela acorda cedo, trabalha como comunicadora numa empresa de extração de memórias hospitalares de ex-pacientes do Estado, mas a tarde ela já está liberada, o sindicato dos comunicadores da saúde estatal não lhes permite trabalhar mais, com medo do que o abuso de informações traumáticas pode causar. Eu acordo mais tarde, o editor de uma revista eletrônica me paga para criar piadas virtuais e enviar para seus funcionários via email a partir das 14 horas, como sou uma pessoa sem humor definido, mas precisava me manter diante de possíveis concorrências, então criei um bot para isso, na verdade eu não sei criar bots, por isso tive que comprar da empresa de um amigo da província que nasci, mas pra falar a verdade eu não tinha 280 créditos, então eu raptei este bot com a ajuda de um outro amigo que também é amigo deste amigo da província que nasci e inclusive também morou próximo, mas hoje já mora mais longe, outra província.
            A mulher já trabalha naquela empresa a 2 anos e com o excesso de informações que caíram sobre ela o sindicato enviou-a à clinica de checagem e renovação cerebral, eu fui acompanhá-la numa tarde gelada pois precisava de acompanhante, pois é perigoso uma pessoa esverdeada e tonta sair sozinha pelas ruas. Quero deixar claro que “esverdeada” é pelo remédio que se aplica nas veias, acho que é nas veias. A clínica fica naquele prédio alto que não sei o nome do estilo, onde também fica a embaixada do Paraguai e advogados de crimes sexuais, ou serão de animais? É que me lembrava aquele filme O olho mágico do amor, mas enfim, não vem ao caso, a não ser quando eu estiver envolvido com algum crime sexual ou animal, ou de zoofilia.
            A porta era pequena e a recepção logo na entrada (aquela sirene chata que avisa que você chegou ficava um metro para dentro, ao tocar na hora inesperada tende a te assustar, caso você vá a este lugar já está avisado), mas a sala é grande, clara, vazia e com cadeiras verdes em sequencia lateral pelas paredes e metade delas completam o miolo da sala. Quando chegamos estava cheio de pessoas, todas de olhos fechados, mesmo que alguns segurassem revistas, aí veio uma mulher (diga-se enfermeira?) com uma seringa e pediu para o gordo de 50 anos abrir o olho, era amarelado, ela injetou a agulha, o olho vazou pelas rugas fofas do rosto, aí ela prosseguiu fazendo o mesmo numa moça de cabelo preto e escorrido com seus 20 anos, e num menino de 10 anos também gordo, acompanhado da mãe gorda (que nem estava no tratamento, mas também mantinha os olhos fechados?), mas os gordos ficaram restritos aos lado esquerdo, no direito uma velha de 137 anos mais ou menos, uma mulher normal de 40 e um senhor grande da mesma idade, mas bem elegante. Eu já havia sentado entre eles de costas para a janela, assim como estava no meu quarto, a mulher sentou ao meu lado, a enfermeira trouxe um pano branco e enfiou no nariz dela, no ambiente toca João Gilberto, eu não sei por que este clima, de repente todos somem e estou só na sala grande e clara.
            Amanheceu chovendo, fui jogar o lixo e ali perto o cheiro de um produto químico era forte, hoje não havia restos de animais. A mulher do trabalho da mulher ligou avisando que ela não viria para casa, pois fora do horário de trabalho ela passaria internada na empresa que trabalha para se curar das convulsões e dos lapsos psicóticos adquiridas pelas luzes do quadro de comunicação da sua mesa, voltando a trabalhar pela manhã, seguindo assim os horários, isso foram seus chefes que falaram, pois logo em seguida me enviaram uma mensagem holográfica em letras Times New Roman avisando que ela está impossibilitada de retornar ao apartamento 37 pois provavelmente ficará eternamente entre as duas salas da empresa. É por isso que não gosto dos sindicatos, uma vez pertenci ao sindicato dos poetas místicos, me associei a eles para poder participar das reformas salariais e autorais dos criadores de signos místicos e extrassensoriais, mas eles estavam exigindo que eu usasse somente roupas 100% algodão, mas em nossa cidade temos que usar roupas muito pesadas pelo frio e pela fuligem, pois fiquei três meses com a pele toda manchada na única vez que usei o kit hippie comprado no centro da cidade.

            Isso me lembrou o que aconteceu numa tarde dessas que fui no ferro velho ver alguns livros usados, estava procurando um Ray Bradbury quando encontrei um cyborg com quem trabalhei na instauração da casa dos ciclopes, um lugar onde haveriam performances artístico/alcoólicas e eventuais orgias transexorcistas entre maquinas e humanos todas transmitidas ao vivo para Júpiter, mas na época o projeto embargou devido a embargos referentes a matérias primas vindas da Sicilia para fazermos os drinks. Fui falar com ele que apesar de me reconhecer me olhava estranhamente com seus olhos brancos, falei para ele aparecer que ofereceria um óleo de cozinha, mas ele nada afirmou como o fazem os cyborgs normalmente, gostaria de saber como andava o bonde dos mágicos de máquinas, mas devido seu mau humor resolvi ir embora, triste, não encontrei o livro e fiquei com sensação de oco em relação a um ex-companheiro de trabalho. 

Diego Marcell
09/09/2016

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