A mente de todos os dias é a mente de Buda.[1]
O desempenho no acontecimento é a
chance que a arte contemporânea tem de emitir valores a sociedade, onde talvez
o mais destacado no momento atual seja justamente o da atenção ao momento.
O budismo esteve presente nos atores
dos primeiros happening’s e com isso parece que tal conexão nunca se desfez
essencialmente. A atenção ao momento presente é realmente vivenciar, viver o
ato, estar em conexão com toda diversidade de vida.
No culto à Dionísio nosso corpo toma
mais da presença, isso possibilita que já não estejamos ausentes, que não sejamos
virtuais, que não estejamos no passado ou no futuro, mas que realmente façamos
o presente, nos apresentando, no movimento, na voz consciente ou na percepção
das formas; “desde que estejam à luz do sol da plena consciência, todo
pensamento, toda ação tornam-se sagrados. Sob esta luz não existem fronteiras
entre o sagrado e o profano”.[2]
A dificuldade de manter qualquer
atenção ao milagre da vida nos dias atuais passa a ser também o grande desafio
dos artistas. Sendo assim o happening se torna o grande chamamento a experiência
de realidade da feitura de milagres. Se o momento é fenômeno extra-ordinário, não
cotidianamente mecânico, é assim que a verdadeira religião acontece, pois
atentos à atualidade estamos novamente ligados a deus.
No período de transição da arte
moderna para a contemporânea, surgiram questões de conceito que foram se dando
para cada tipo de nova criação artística. Uma destas Hélio Oiticica relata no
texto sobre a nova objetividade, destacando o papel particular do fenômeno brasileiro,
principalmente sobre a teoria do Não-objeto de Ferreira Gullar; escreve ele:
A proposição de Gullar
que mais nos interessa é também a principal que o move: quer ele que não bastem
à consciência do artista como homem atuante somente o poder criador e a inteligência,
mas que o mesmo seja um ser social, criador não só de obras mas modificador também
de consciências (no sentido amplo, coletivo), que colabore ele nessa revolução
transformadora, longa e penosa, mas que algum dia terá atingido o seu fim – que
o artista “participe” enfim da sua época, de seu povo.[3]
Naquele período de transição,
fala-se da arte pós-moderna e ainda da antiarte, justamente por vir o termo “arte”
carregado de valores ligados ao transcendente, ou seja, todos os milênios sob a
pecha platônica a qual Nietzsche já denunciava quando diz, por exemplo que
A realidade foi despojada
de seu valor, de seu sentido, de sua veracidade justamente no mesmo grau em que
foi falsificado um mundo ideal (...)
A mentira do ideal foi, até agora, a blasfêmia
contra a realidade; a própria humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa
até o mais baixo de seus instintos – a ponto de adotar os valores inversos como se fossem aqueles com os
quais ela poderia garantir para si a prosperidade, o futuro, o direito altivo ao futuro.[4]
Quando finalmente
a arte ganha autonomia, proporcionar-se-á a chance dela exercer a autorreflexão
como campo sociocultural, permitindo seu poder filosófico, aproximando-a das
palavras do filósofo quando diz que “a filosofia, assim como a entendi e
vivenciei até agora, é a vida espontânea no gelo e nas montanhas mais altas – a
procura de tudo que é estranho e duvidoso na existência, de tudo aquilo que até
agora foi excomungado pela moral”[5]; por isso
que um pouco mais de meio século depois o artista vai refletir:
Se formos um grupo
atuante, realmente participante, seremos um grupo contra coisas, argumentos, fatos. Não pregamos pensamentos
abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos, que para o serem tem que
corresponder aos itens citados e sumariamente descritos cima. No Brasil (nisto também
se assemelharia ao Dadá) hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que
conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo que seria em suma o
conformismo cultural, político, ético, social.[6]
Quando finalmente o deus ideal
morre, nascemos como pequenos deuses, tornamos à conexão natural, mas é através
da arte que a consciência prática destes valores se materializam, pela vivencia
do artista sendo este seu trabalho, como escreveu Lygia Clark na Carta a Mondrian:
Se eu trabalho, Mondrian,
é para antes de mais nada me realizar no mais alto sentido ético-religioso. Não
é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir a outra
pessoa este “momento” parado na dinâmica cosmológica, que o artista capta.[7]
Quando finalmente
os valores estão destituídos da verticalidade posta por um poder estabelecido,
manifesto assim pelo momento do artista, é que o milagre da vida acontece, na
pluralidade da capacidade humana de perceber tais questões é onde finalmente um
mundo justo pode ocorrer, a comunhão, pois se dá em aceitar a condição da
espécie de alcançar pela experiência mesma e não mais sob um jugo de devir.
É essa a tecla
fundamental do novo conceito de antiarte: não apenas martelar contra a arte do
passado ou contra os conceitos antigos (como antes, ainda uma atitude baseada
na transcendentalidade), mas criar novas condições experimentais, em que o
artista assume o papel de “proposicionista”, ou “empresário” ou mesmo “educador”.
O problema antigo de “fazer uma nova arte” ou de derrubar culturas já não se
formula assim – a formulação certa seria a de se perguntar: quais as
proposições, promoções e medidas a que se devem recorrer para criar uma
condição ampla de participação popular nessas proposições abertas, no âmbito criador
a que se elegeram esses artistas. Disso depende sua própria sobrevivência e a
do povo nesse sentido.[8]
Eis o árduo trabalho do
artista-filósofo ante a massa dada aos grandes poderes, Estado e mercado
principalmente, os donos das mídias em tempos de hipermídia. Nos resta
apresentar com atitudes de vida e obras que “falem”, que emitam os valores
distintos dos domínios, eis o campo que devemos agir, eis que precisamos lutar
pela liberdade do fazer artístico, mas do fazer artístico livre das ideologias
externas, é preciso uma arte que emita os valores do Um através de sua política
inerente para que a humanidade seja exaltada e não os poderes.
Diego Marcell
24/04/2018
Referências
CLARK, Lygia. Carta a Mondrian in FERREIRA, Glória;
COTRIM, Cecília. Escritos de artistas:
anos 60/70. Tradução Pedro Süsseking... et al. – Rio de Janeiro: Zahar,
2006.
NHAT-HANH,
Thich. Momento presente, momento
maravilhoso. Tradução Maria Alda Xavier Leoncio e Odete Lara. Rio de
Janeiro: Sextante, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich
Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se
torna o que a gente é. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM,
2003.
OITICICA, Hélio.
Esquema geral da Nova Objetividade in
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos
de artistas: anos 60/70. Tradução Pedro Süsseking... et al. – Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário