Eu poderia ter
dito “saiu o melhor álbum de rock do ano”, mas alguns puritanos diriam que
blues não é rock, então eu poderia ter dito “o melhor álbum de blues”, mas
quantos discos de blues efetivamente nos chegam aos ouvidos? Então resolvi
universalizar, já que nos dias de hoje a arte de Chuck Berry parece fadada a
perecer nas mãos do indie rock contemporâneo, aquele onde num empaste
monocromático não ouvimos a guitarra, o baixo, a bateria e nem o vocal, ou
então essa arte, o rock (e suas genealogias) o ritmo da juventude, que é o
símbolo do questionar das velhas gerações conservadoras, que parece ter sido
trocado por violões broxantes e discursos recalcados num extenuante gesto
flácido de amor platônico. Levando em conta este contexto, é que afirmo
que este álbum não se restringe à subgêneros, mas se apresenta como música,
como expressão artística com estética suficiente para nos ferir, nos tirar do
lugar comum, onde o clássico é encarnado em atemporalidade graças a ousadia de
Paulo Valesi, o JoeHomeless, que bancou tal risco, que provou que é possível
ainda produzir arte de qualidade e tudo isso porque não ficou a dar ouvidos a
opinião pública ou ficou a espera dos financiamentos estatais para ser o
artista que é.
O
álbum começa com uma guitarra surf music tarantinesca que já constava como
trilha do premiado e homônimo vídeo Souln Loco de 2009,
melhor introdução para tal ambientação seria difícil de encontrar; aí segue
para Isto é o blues do lendário blues
man brasileiro Renato Fernandez da banda Bêbados Habilidosos, ao mesmo tempo
que apresenta a voz peculiar e marcante, pra não dizer “nascida” pra isso de
Érica Geraldo, numa canção que dá o clima do que vem adiante, a música é um hit
por natureza, daqueles que basta ouvir, para sair cantando o dia todo, mas
diferentemente dos hits populares que se ouvem por aí, este você não teria
vergonha e nem passaria raiva de tê-lo em mente. Além de ter um riff insinuando
o clássico da trilha de Nino Rota para The Godfather - não sei se
propositalmente ou não - todavia antes que se apresente evapora lindamente
entre outros acordes do solo de guitarra.
Old onde JoeHomeless extrai a síntese de
Bukowski para ser de fato um blues na sensualidade da gaita tocada por Indiara
Sfair, nos envolve com o desejo de beber whisky às quatro da tarde de um sábado
de sol, para ver se até a meia-noite poderemos perder nossa alma.
Tudo gira surge com um baixo funkiado
feito por Fabiets Machado, que junto à rouquidão suave da voz de Érica e a
bateria centrada de Netto, permitem a incansável guitarra do autor da música um
clima de noite, de verão, de Brasil e dança, é um flerte com a existência que
deve ser vivenciada mais que qualquer coisa, ele nos instiga a querer o eterno
retorno proclamado por Nietzsche, é um êxtase dionisíaco enquanto a espaçonave
não chega.
Então,
no meio do caminho, dito que o autor tem seus enredos em números, a quinta
música, outra composição de Renato Fernandez, Mágoa é daquelas coisas raras, que arrancam arrepios, depois
lágrimas, onde os gênios pedem auxilio às ninfas pra jorrarem a sensação de
eternidade nos homens, é onde só quem pertence à estirpe dos melhores podem
beber, é o mel com gota de fel, é a serpente que dá o fruto do conhecimento e
da separação, é deus e o diabo torturando Jó, isso é mágoa, é a beleza
materializada que não conseguimos desviar o olhar, tudo isso com um sax
elegantíssimo feito por Paulo Henrique do qual é impossível ficar imune, mas é
preciso sentir, quem tem alma, será então arrebatado a este céu cinza que Kant
chamava de sublime e de lá saboreará seus frutos.
Chegamos
ao Blues da encruzilhada lembrando
que somos netos do Boogie-woogie e, portanto, filhos das velhas lendas, das
viagens de trem, da dança frenética e de toda linha de três acordes síntese que
viriam depois. A encruzilhada nos chama pra pista, pro chão de madeira e os
sapatos de couro.
Voltamos
então ao gingado negro e encontramos Jimi Hendrix em Tributo ao Renato Fernandez pois é aqui e para isso que vivemos de
um jeito blues, os recortes e os recordes se fazem presentes, não há como não
embarcar num dos vagões em movimento. E aí milagrosamente desaguamos num reggae
com aqueles maravilhosos pianos que não se ouvem à cinquenta anos, é César Reis
a fazer os tempos desta parceria dos irmãos Valesi em River from Hell que é uma espécie de tentação que nos deixa
querendo mais.
Pra
quem bebe sozinho na mesa de um bar, é pela composição do bêbado habilidoso que
imergimos no Blues da solidão para
vagar pela noite em busca de migalhas de carinho, enquanto Érica é taxativa nos
versos a guitarra de Joe chora, exclamando as arritmias dos que não compartilham
a dor, de todos que vagam pela noite e não tem onde despejar os desamores, e
que mesmo largados no mundo, não tem medo de irem ainda muito fundo.
Chegamos
então à décima rodada, com Aletheia
Frankenstein a guitarra verbaliza, fala suas frases quase soletradas
enquanto o baixo vai dando os pulsos, jogando ondas no ar, o contratempo ideal
da verdade dada pelo doutor à sua criatura viva pela eletricidade, apenas para
jogar, é o jogo latente dado ao ouvinte sem que este note, até que tudo acaba
numa explosão que nos deixa querendo mais e mais, mais Blues Bend, senhor! Numa
era sem guitarras e sem liberdades instrumentais orgânicas, finalmente ouvimos
algo que nos faça pulsar as veias, que nos intensifique o grená do sangue, que
nos toque os tornozelos e nos arrepie a nuca; é por isso que não titubeio em
repetir: mais Blues Bend, por favor, senhor!
Diego Marcell
04/04/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário