4.4.17

Saiu! Saiu, o melhor álbum musical de 2017: Blues Bend


            Eu poderia ter dito “saiu o melhor álbum de rock do ano”, mas alguns puritanos diriam que blues não é rock, então eu poderia ter dito “o melhor álbum de blues”, mas quantos discos de blues efetivamente nos chegam aos ouvidos? Então resolvi universalizar, já que nos dias de hoje a arte de Chuck Berry parece fadada a perecer nas mãos do indie rock contemporâneo, aquele onde num empaste monocromático não ouvimos a guitarra, o baixo, a bateria e nem o vocal, ou então essa arte, o rock (e suas genealogias) o ritmo da juventude, que é o símbolo do questionar das velhas gerações conservadoras, que parece ter sido trocado por violões broxantes e discursos recalcados num extenuante gesto flácido de amor platônico. Levando em conta este contexto, é que afirmo que este álbum não se restringe à subgêneros, mas se apresenta como música, como expressão artística com estética suficiente para nos ferir, nos tirar do lugar comum, onde o clássico é encarnado em atemporalidade graças a ousadia de Paulo Valesi, o JoeHomeless, que bancou tal risco, que provou que é possível ainda produzir arte de qualidade e tudo isso porque não ficou a dar ouvidos a opinião pública ou ficou a espera dos financiamentos estatais para ser o artista que é.
            O álbum começa com uma guitarra surf music tarantinesca que já constava como trilha do premiado e homônimo vídeo Souln Loco de 2009, melhor introdução para tal ambientação seria difícil de encontrar; aí segue para Isto é o blues do lendário blues man brasileiro Renato Fernandez da banda Bêbados Habilidosos, ao mesmo tempo que apresenta a voz peculiar e marcante, pra não dizer “nascida” pra isso de Érica Geraldo, numa canção que dá o clima do que vem adiante, a música é um hit por natureza, daqueles que basta ouvir, para sair cantando o dia todo, mas diferentemente dos hits populares que se ouvem por aí, este você não teria vergonha e nem passaria raiva de tê-lo em mente. Além de ter um riff insinuando o clássico da trilha de Nino Rota para The Godfather - não sei se propositalmente ou não - todavia antes que se apresente evapora lindamente entre outros acordes do solo de guitarra.
            Old onde JoeHomeless extrai a síntese de Bukowski para ser de fato um blues na sensualidade da gaita tocada por Indiara Sfair, nos envolve com o desejo de beber whisky às quatro da tarde de um sábado de sol, para ver se até a meia-noite poderemos perder nossa alma.
            Tudo gira surge com um baixo funkiado feito por Fabiets Machado, que junto à rouquidão suave da voz de Érica e a bateria centrada de Netto, permitem a incansável guitarra do autor da música um clima de noite, de verão, de Brasil e dança, é um flerte com a existência que deve ser vivenciada mais que qualquer coisa, ele nos instiga a querer o eterno retorno proclamado por Nietzsche, é um êxtase dionisíaco enquanto a espaçonave não chega.
            Então, no meio do caminho, dito que o autor tem seus enredos em números, a quinta música, outra composição de Renato Fernandez, Mágoa é daquelas coisas raras, que arrancam arrepios, depois lágrimas, onde os gênios pedem auxilio às ninfas pra jorrarem a sensação de eternidade nos homens, é onde só quem pertence à estirpe dos melhores podem beber, é o mel com gota de fel, é a serpente que dá o fruto do conhecimento e da separação, é deus e o diabo torturando Jó, isso é mágoa, é a beleza materializada que não conseguimos desviar o olhar, tudo isso com um sax elegantíssimo feito por Paulo Henrique do qual é impossível ficar imune, mas é preciso sentir, quem tem alma, será então arrebatado a este céu cinza que Kant chamava de sublime e de lá saboreará seus frutos.
            Chegamos ao Blues da encruzilhada lembrando que somos netos do Boogie-woogie e, portanto, filhos das velhas lendas, das viagens de trem, da dança frenética e de toda linha de três acordes síntese que viriam depois. A encruzilhada nos chama pra pista, pro chão de madeira e os sapatos de couro.
            Voltamos então ao gingado negro e encontramos Jimi Hendrix em Tributo ao Renato Fernandez pois é aqui e para isso que vivemos de um jeito blues, os recortes e os recordes se fazem presentes, não há como não embarcar num dos vagões em movimento. E aí milagrosamente desaguamos num reggae com aqueles maravilhosos pianos que não se ouvem à cinquenta anos, é César Reis a fazer os tempos desta parceria dos irmãos Valesi em River from Hell que é uma espécie de tentação que nos deixa querendo mais.
            Pra quem bebe sozinho na mesa de um bar, é pela composição do bêbado habilidoso que imergimos no Blues da solidão para vagar pela noite em busca de migalhas de carinho, enquanto Érica é taxativa nos versos a guitarra de Joe chora, exclamando as arritmias dos que não compartilham a dor, de todos que vagam pela noite e não tem onde despejar os desamores, e que mesmo largados no mundo, não tem medo de irem ainda muito fundo.
            Chegamos então à décima rodada, com Aletheia Frankenstein a guitarra verbaliza, fala suas frases quase soletradas enquanto o baixo vai dando os pulsos, jogando ondas no ar, o contratempo ideal da verdade dada pelo doutor à sua criatura viva pela eletricidade, apenas para jogar, é o jogo latente dado ao ouvinte sem que este note, até que tudo acaba numa explosão que nos deixa querendo mais e mais, mais Blues Bend, senhor! Numa era sem guitarras e sem liberdades instrumentais orgânicas, finalmente ouvimos algo que nos faça pulsar as veias, que nos intensifique o grená do sangue, que nos toque os tornozelos e nos arrepie a nuca; é por isso que não titubeio em repetir: mais Blues Bend, por favor, senhor!

Diego Marcell
04/04/2017


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