30.12.15

Niilistas, ciborgues e outras minorias


            As relações na existência proporcionadas pela teoria ciborgue de Donna Haraway veem de encontro com muitas outras questões que podemos corelacionar a partir de um ponto de superação dos vieses dualistas da cultura ocidental, que estão inclusive, solidificadas nas concepções marxistas, e por isso, noto a divergência dos grupos minoritários que se aderem a tais ideologias para que estas abarquem as suas, pois quando a fundo, as linhas marxistas e da chamada esquerda de modo geral, vão esbarrar numa incoerência “espiritual” das possibilidades destas minorias alcançarem de fato seus objetivos mais nobres, o de se inserirem como normalidade numa sociedade múltipla, sem a divisão disso ou daquilo; e é justamente isso que a autora do Manifesto ciborgue nos possibilita com sua teoria, apesar de ainda chamar ela de feminismo socialista, creio que por um problema histórico em seu próprio país com os opositores políticos e a supremacia militar dos Estados Unidos da América.
            Deixemos, porém, os pontos menores de fora, para focarmos nas grandes vantagens que o mito ciborgue nos proporciona, e não apenas ao feminismo, mas para toda manifestação de uma sociedade sem preconceitos e dominações externas de poder, sejam de que nível forem, pois isto pode ser reflexo familiar de uma tradição longínqua, ou os aparatos de dominação estatal presentes em vários pontos da sociedade, em maior ou menor grau dependendo do governo.
            Creio que as revoluções causadas pela informação e pelo ciberespaço, ao saírem do controle, ao mesmo tempo que podem servir a grandes dominadores, ela também lhes foge, pois sua construção e poder é incalculável a cada novo servidor que adquire novidades. Por isso a possibilidade do anarcocapitalismo, seus Bitcoins, seus negócios colaborativos e toda possível fuga de um Estado opressor, que pretende escravizar toda individualidade e existência com suas burocracias, só servem para repensarmos quais as ideologias que os grupos minoritários depositam sua fé e esperança, pois tudo indica serem opções contraditórias e um verdadeiro tiro no pé.
            Donna Haraway assim como Nietzsche, nos ensinam a viver, a experimentar a vida, a existência, em sua plenitude, por isso ambos criticam os dualismos, na verdade Nietzsche critica e expõe seu veredito filosófico, e Haraway apresenta uma prática possível graças a contemporaneidade e sua alta tecnologia.
            Mas ainda há um ponto de toda convergência que parece esbarrar naqueles que desejam a dominação, e ainda mais, aqueles que desejam a eliminação do outro, que são os espíritos fracos ditos pelo filósofo alemão, que é a questão do niilismo ativo. Este niilismo podemos contrapor ao seu oposto, o niilismo passivo, num único personagem, aquele vivido por Christoph Waltz no filme Teorema Zero; pois ali aparece claramente os dois principais objetos de crítica social dado por Nietzsche: o mercado e a fé. O personagem trabalha numa empresa que quer revelar a razão da existência, porém ele tem esperança numa ligação que revelará o propósito de sua vida, assim ele abdicou de experimentar uma vida plena aguardando a resposta externa, ao mesmo tempo que sua empresa é movida por um propósito de mercado e não de valores reais para a humanidade, sendo assim ele segue com seu vazio, autodeclarado, pois não consegue projetar o paraíso artificial quando a garota de programa assim o permite. Ele então alcança de fato uma mudança e passa a outra perspectiva, não necessariamente de felicidade, mas de saída do vazio, quando entende que a ligação era falsa, ou seja, a esperança era numa mentira, e que o teorema zero não importava; a partir deste momento, e portanto, agora um niilista ativo, ele pode finalmente vivenciar o paraíso artificial em toda sua possibilidade, deixando claro ser a isto que estamos condicionados como seres humanos, diante do absurdo e da banalidade que é a existência, ter consciência da artificialidade do paraíso é fundamental.
            Porém, a sociedade guarda grande preconceito e marginaliza os niilistas, pois eles vão contra os valores arcaicos que ainda comandam a sociedade, mesmo que laica, ela está impregnada dos valores do mundo perfeito e separado dado por Platão. No filme Cubo, por exemplo, ele serve para expor as hipocrisias sociais, quando temos o artista de fugas que é um dos primeiros a sucumbir naquele sistema (pois no fundo, o criador só pode agir para si e não para a comunidade, assim aquele sistema social personificado no cubo é responsável pela velocidade da sua eliminação de acordo com sua inutilidade para a comunidade deficiente dos suprimentos básicos necessários); temos aí uma médica que tem paranoia com teorias da conspiração; um policial que é assassino, sendo o grande inimigo do grupo; aí finalizamos com a “salvação” do altista, e a grande contribuição da universitária, mas quero dar destaque àquele chamado de niilista no filme, quando sem qualquer esperança de salvação, criticado pela moralidade heroica do policial, o funcionário de escritório acaba sendo aquele que ao final dá a sua vida à aquela sociedade, pois seus valores encerravam-se nele mesmo, não eram pautados em qualquer moral superior e espetacular, sendo assim ele que é um tipo, que é marginalizado por suas ideias da falta de valor, este é o único que pode proporcionar realmente um ato digno de louvor entre homens, pois é honesto e cru.
            E aí tomo o ultimo exemplo cinematográfico do filme Ex machina, quando a inteligência artificial mostra sua eficiência, como um exemplo não anti-humanidade, mas como foco na deficiência ainda reinante de alguns pensamentos que o homem carrega baseado nos valores de mercado e fé: de mercado quando o homem criador, portanto deus, é morto por sua criatura; e no caso da fé, quando ao aplicar o teste de Turing mesmo já sabendo do que se tratava, o programador solitário serviu de chave de libertação ao espírito forte, ficando ele preso por seus próprios valores e fraquezas.
            Estes exemplos servem para expor um problema de conscientização social sobre a liberdade perante aos imperativos ideológicos, sejam de nível estatal ou minoritário, pois a resignificação das relações de trabalho, educação, sexo e assim por diante, devem estar convergindo para o futuro destas mesmas vontades no indivíduo para um todo diverso e livre. Por isso o papel do niilista é tão importante e não deve ser realocado a qualquer outro segmento, pois o espírito livre não pode se apegar a nada que não lhe pertença, portanto, à ideologias, pois as mesmas indicam a exterioridade das ideias, e quando alguém adere, passa a aceitar a totalidade daquilo. Diferentemente das relações ciborgue, porque se dão por aquilo que Haraway chama de relação de fronteiras, mas é quando nós mesmos somos essa fronteira.
Evidente que ainda devemos rever muito das terminologias usadas até então, pois muitas outras concepções surgiram nestes vinte e tantos anos, mas vejo que o fundamental não está nas várias terminologias, mas no entendimento das relações entre a comunidade, na alteridade proporcionada por uma espécie de anarquia espiritual que irá aceitar toda possibilidade de benefício, sem se tornar um porta bandeira de falas de direitos e por consequencia de regras, negando assim, se dentro de suas proximidades enxergar algo ruim. O espírito livre foge às regras para estar pronto à possibilidade, assim como o Buda que de mente vazia acessa o pensamento ideal para o momento.

Diego Marcell
29/12/2015


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